Por Edelvânio Pinheiro*
Chovia a cântaros, e a água que caía do céu parecia querer lavar as estradas e o próprio tempo. Meu retorno de Salvador, costumeiramente exaustivo, transformou-se em uma travessia quase épica até chegar em Teixeira de Freitas. Centenas de ônibus, caminhões e carretas se enfileiravam em um lamaçal ao longo de um trecho de pouco mais de 70 km de estrada de chão, por um atalho que há tempos perturba quem passa, em carros grandes, pela BR-101. O horizonte encharcado diluía expectativas e planos, deixando passageiros e motoristas desanimados e impacientes. Teve até quem culpasse a Águia Branca pelo que acontecia, tirando a responsabilidade das autoridades, mesmo sendo, ao meu ver, uma empresa que, dentro do possível, atendeu bem seus clientes, inclusive oferecendo toda a alimentação necessária.
Alguns optavam pelo sarcasmo, outros pela leveza da brincadeira; houve até quem acionasse a polícia, temendo complicações após um cateterismo, e mães com crianças especiais tentavam, entre olhares preocupados, controlar o caos. Os mais conectados buscavam refúgio nos celulares sempre que o sinal reaparecia, tentando escapar mentalmente das mais de 27 horas de viagem, um percurso que normalmente se completaria em cerca de 15 horas. Cada um, à sua maneira, buscava um pouco de entretenimento para suportar a monotonia daquela verdadeira via crucis.
Foi nesse cenário que o acaso, senhor das coincidências que emaranham nossas vidas, traçou uma linha precisa e inesperada. Um ilustre ser humano escolheu a poltrona 23, bem ao meu lado. Ninguém pode explicar as caprichosas linhas que o Grande Arquiteto do Universo desenha em nossas existências, mas creio, firmemente, que as mais belas coincidências têm autoria d’Ele.
E foi assim que tive a rara oportunidade de encontrar o doutor Renzo, professor universitário e médico de Itamaraju, que atende em Teixeira de Freitas, Porto Seguro e outras cidades do extremo sul da Bahia. Em meio a um universo repleto de encontros banais, o acaso me presenteou com uma companhia que tornou a viagem menos árdua e infinitamente mais rica. Doutor Renzo tem uma inteligência que se manifesta com naturalidade, um equilíbrio de erudição e empatia que reverbera em cada gesto, em cada palavra. Conversamos sobre sociologia, política, religião, literatura; falamos da obra de Stanislaw Ponte Preta e lembramos de Capitu, personagem de Machado de Assis; analisamos a complexidade do cenário político nacional, as interferências geopolíticas globais e os conflitos no Oriente Médio e na Europa. Sua erudição transbordava como um rio em cheia, mas sem jamais perder a serenidade.
No percurso, ainda tive a satisfação de conhecer o escritor João Filho, autor da obra Anatomia do corpo de Cristo: introdução (Kelps, 2022), enfermeiro e ex-aluno do doutor Renzo. Essa pequena constelação de encontros, durante uma saída rápida para tomar um café, só reforçou a sensação de que a escolha da minha cadeira naquele ônibus foi, de fato, providencial. Ali ao lado estava um homem cuja inteligência se harmoniza com a nobreza de caráter.
Quando o ônibus diminuiu a velocidade e finalmente parou no terminal rodoviário de Itamaraju, percebi que a exaustão tinha um preço. Doutor Renzo precisou cancelar atendimentos no dia seguinte. Nosso adeus foi selado por um aperto de mãos firme e respeitoso, enquanto ele desaparecia na multidão de passageiros.
A chuva continuava, persistente, até que finalmente avistei o trevo de Teixeira de Freitas. Ver aquele trevo, naquele momento, jamais me trouxe tanta alegria.
No fim, cada hora daquela viagem valeu a pena. Conheci um ser humano que estava na capital em mais um compromisso acadêmico, dedicando-se a uma nova especialização para oferecer atendimento ainda mais qualificado aos seus pacientes. Um ser humano que carrega consigo duas das maiores dádivas da vida: o conhecimento e a empatia.
A memória desse encontro permanecerá, como toda grande lição, viva, perene e iluminadora.
*Edelvânio Pinheiro é bacharel em Jornalismo pela Católica (UCA), foi editor do jornal Alerta de Teixeira de Freitas e correspondente do A Tarde, de Salvador, na extinta sucursal do extremo sul, e é diretor-geral do site Água Preta News. É também radialista, ex-chefe de jornalismo da Rádio Extremo Sul de Itamaraju e diretor-geral da Rádio Master FM, de Itanhém. Escritor, autor de sete obras, incluindo uma obra infantojuvenil publicada no Brasil e em Portugal pela editora Flamingo, possui licenciatura em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e é pós-graduado em Ciências Políticas.
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